MACROSCOPIA OU CLIVAGEM?

Nereu Gilberto de Moraes Guerra Neto

 

   Noo processo de estudo dos tecidos obtidos por biopsias e de peças cirúrgicas, o médico patologista segue, habitualmente, a seguinte rotina básica, necessária e importante:

1. Conferência do material enviado;

2. Leitura e Análise do pedido de exame pelo clínico/cirurgião;

3. Leitura e Análise de resultado de outros exames enviados, anexos ao pedido (e.g. endoscopias, exames de imagem);

4. Estudo macroscópico e descrição do espécime: órgãos, medidas e pesos, aspecto das estruturas normais e patológicas, cor, consistência, etc.;

5. Secção adequada do espécime (clivagem) para obter os futuros cortes histológicos para a análise microscópica;

6. Guarda de material de reserva para eventual reanálise/reclivagem;

7. Término da descrição macroscópica com data e assinatura, além da indicação dos blocos e fragmentos enviados para processamento histotécnico.

    Ao término do estudo macroscópico, o patologista já tem um(s) diagnóstico(s) do(s) material(is) enviado(s). Ou já deveria ter. E este diagnóstico é muito importante para a continuação de seu estudo microscópico.

    Ocorre que, de algum tempo para cá, o exame macroscópico vem deixando de ter a importância que merece, inclusive, em alguns lugares, não sendo mais realizado pelo médico patologista, mas por um técnico, um biólogo, ou um “clivador,” que apenas aprendeu a cortar peças para colocar no cassete para processamento! Aliás, esse profissional não faz macroscopia, mas clivagem, etapa posterior a um exame macroscópico que não é feito...

    Nada mais errado e impróprio! Deixar de realizar o exame macroscópico e delegá-lo a outro profissional não apenas é incorreto tecnicamente, mas antiético, ilegal e mesmo imoral.

    Primeiramente, devemos entender que macroscopia e clivagem são coisas diferentes. O exame macroscópico é uma análise especializada técnico-científica própria do profissional médico, especialista autorizado em Anatomia Patológica. Muito estudo é necessário pelo patologista para bem compreender e descrever os achados do exame macroscópico. Há numerosas fontes de estudo da matéria na literatura.

    Já a clivagem, é o procedimento de seleção e corte de fragmentos do material estudado, adequados ao futuro exame microscópico. Mas como selecionar e cortar corretamente se o exame macroscópico não foi feito pelo especialista na área? Há muitos manuais e livros com as regras básicas da clivagem de diversos tipos de peças cirúrgicas e de tecidos provenientes de biopsias. Mas essas regras são uma base de referência, pois cada caso é um caso e as peças são diferentes, não se prestando a uma generalização tão grosseira.

    Assim, macroscopia e clivagem se complementam, nessa ordem, e não de outra forma. Ambas são da competência do médico patologista. Quantas clivagens são realizadas sem obedecer às regras básicas, pois os cortes mais adequados ao estudo microscópico não obedecem os eixos e locais pré-estabelecidos nos manuais? O médico que clivou seu material sabe o que vai ver na microscopia e espera encontrar as respostas que procura: o tumor atinge somente a muscular realmente? Há neoplasia na zona de aderência do tumor ao órgão contíguo? Etc.

    Além da clivagem depender diretamente do exame macroscópico, a falta deste, feita de modo detalhado e completo, deixa muitas lacunas no estudo do caso. Qual era mesmo o conteúdo do cisto? Qual a cor do tumor? Era homogêneo ou heterogêneo? Qual a relação do tumor com o tecido vizinho? Curiosamente, atualmente, muitos patologistas não descrevem estas características, como se elas não importassem.

    Acredito que o desconhecimento técnico é o principal responsável por essa conduta, associada à negligência e à preguiça, secundariamente. Quem desconhece a importância da coloração dos tumores para seu diagnóstico deve retornar para a residência médica... Esse dado pode auxiliar muito um diagnóstico diferencial. O desconhecimento é sanável, mas a negligência e a preguiça são defeitos mais difíceis de consertar. Impregnam o caráter. E são os responsáveis pelo que citei como atitude antiética, imoral e ilegal.

    O Código de Ética Médica vigente, Resolução CFM no 1930/2009, é claro em seu princípio XIX e artigos 2o e 5o:

XIX - O médico se responsabilizará, em caráter pessoal e nunca presumido, pelos seus atos profissionais, resultantes de relação particular de confiança e executados com diligência, competência e prudência.

Art. 2o Delegar a outros profissionais atos ou atribuições exclusivos da profissão médica.

Art. 5o Assumir responsabilidade por ato médico que não praticou ou do qual não participou.

    A legislação penal também versa sobre o assunto:

       Exercício ilegal da medicina, arte dentária ou farmacêutica

       Art. 282o - Exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou    

                       farmacêutico, sem autorização legal ou excedendo-lhe os limites:

        Pena - detenção, de seis meses a dois anos.

        Parágrafo único - Se o crime é praticado com o fim de lucro, aplica-se também multa.

     O aspecto imoral presente na situação está no fato do médico conhecer suas responsabilidades e a seriedade do que realiza, delegando a indivíduo não qualificado a execução de seu trabalho, por negligência, imprudência ou interesses econômicos escusos por ventura existentes (e.g. economia de tempo e/ou dinheiro em laboratórios privados). A simples delegação de tal exame a outrem já importa no descaso para com a atividade, ainda que o médico saiba da sua importância, ferindo, no mínimo, a responsabilidade profissional, por que não dizer o seu caráter.

     É lamentável a ideia de que o exame visual direto (macroscopia) seja uma etapa “menor” da análise do médico patologista. Mas esta parece ser a atual concepção vigente, ao menos em muitas instituições de saúde públicas e privadas. Repito a grande importância que tem a cuidadosa análise por olhos treinados, que não pode ser substituída por descrições padronizadas que pouco informam.

     É no momento da Residência Médica em Patologia, que nós devemos passar ao neófito a noção da importância, a responsabilidade e o prazer de realizar a macroscopia e a clivagem do modo mais adequado ao caso. Se atuamos com desdém, passamos essa imagem. E a macroscopia cederá lugar a uma clivagem chata, suja e trabalhosa, que não acrescenta nada ao exame histopatológico! Nada mais incorreto...

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