A CABEÇA DE BICHAT

 

Russell Charles Maulitz; Charles Lenormant; Maurice Genty; Jean Jacques Rigal; Jules Gérin; Albert Prieur & Roberto Marco Cuéllar

   

O cemitério Père Lachaise, em Paris, é conhecido como o mais famoso legado da França napoleônica, com incontáveis monumentos em granito e mármore. Foi inaugurado em 1804, perpetuando em seus jazigos as homenagens aos mais famosos e notórios personagens da sociedade francesa. Em um canto do cemitério fica uma lápide, um grande monólito cinza claro, que em nada chama a atenção, com exceção dos apagados dizeres gravados - “A Xavier Bichat” -, especialmente, para os estudiosos da história da medicina.

 

Pere Lachaise Cemetery in 1837

Cemitério Père Lachaise, Paris, em 1837.

1024px Tombe Bichat  1024px Tombe Bichat Grande 

Lápide do túmulo de Marie François Xavier Bichat (1771-1802), Cemitério Père Lachaise, Paris.

portrait of francois xavier bichat 1771 1802 pierre maximilien delafontaine

  M.F.Xavier Bichat (1771-1802)

   

Marie François Xavier Bichat (1771-1802), médico, cirurgião, fisiologista e anatomista  francês, exercendo a medicina no Hôtel-Dieu em Paris, deu cursos particulares de anatomia e fisiologia cirúrgicas, trabalhando diariamente em vivissecções, dissecações anatômicas, necropsias anatomopatológicas, experimentos laboratoriais, aulas teóricas, etc. Dirigiu pessoalmente a formação de 80 alunos, chegando a examinar, em um só período de inverno, cerca de 600 cadáveres. Praticamente vivia e dormia nas salas de dissecação. Deixou três obras principais, entre inúmeras outras:

Traité des membranes en géneral et des diverses membranes en particulier (1799);

Recherches physiologiques sur la vie et la mort (1799) e

Anatomie générale, appliquée à la physiologie et à la médecine (4 tomes) (1801).

   Bichat é reverenciado e considerado como o fundador da medicina científica francesa, por ser o pai de duas importantes tradições médicas, na Fisiologia, incluindo os nomes de François Magendie (1783-1855) e Claude Bernard (1813-1878), médicos e fisiologistas franceses, e na Patologia, com René Théophile Hyacinthe Laennec (1781-1826), médico clínico e patologista francês, e Thomas Hodgkin (1798-1866), médico patologista inglês.  A Tradição sobre a Patologia dos Tecidos remonta aos anos entre 1760 e 1790, com James Carmichael Smyth (1741-1821), médico escocês, William Cullen (1710-1790), médico e químico escocês, John Hunter (1728-1793), médico cirurgião escocês e Edward Johnstone (1757-1851), médico inglês.

   Bichat foi o pioneiro nos estudos físicos e químicos simples dos tecidos, pois era pessoalmente contrário ao uso do microscópio. Descreveu 21 tecidos simples (7 gerais ou difusos e 14 especiais ou localizados), e considerou o "tecido" como a unidade morfológica e fisiológica do ser vivo e, os órgãos, como compostos pela combinação de certo número de tecidos elementares e distintos, sendo a função dos órgãos resultante da combinação das atividades vitais dos tecidos, que os compõem. Estes estudos resultaram na publicação de seu Traité des membranes en géneral et des diverses membranes en particulier (1799), citado acima. Em sua obra Anatomie générale, appliquée à la physiologie et à la médecine (4 tomes) (1801), Bichat fez uma descrição da anatomia geral, na saúde e na doença, abordando os tecidos simples (systèmes simples), com as suas funções específicas, considerados isoladamente insuficientes, mas que, ao se combinarem, constituindo os órgãos, formam um todo único plenamente morfofuncional. Referiu que os aparelhos são a reunião de vários órgãos, que concorrem para uma dada função. Considerou ser o estudo da anatomia geral uma introdução à anatomia descritiva (dos tecidos). Em suas obras M. F. X. Bichat estabeleceu a importância da correlação anatomoclínica no estudo da patogenia.

FranoisMagendie1783 1855

François Magendie

(1783-1855)

ClaudeBernard1813 1878

Claude Bernard

(1813-1878)

Renne Laennec

René Théophile H. Laennec

(1781-1826)

Thomas Hodgkin

Thomas Hodgkin

(1798-1866)

James Carmichael Smyth physician

James Carmichael Smyth

(1741-1821)

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William Cullen

(1710-1790)

John Hunter 1728 1793 Wellcome crop

John Hunter

(1728-1793)

Edward Johnstones

Edward Johnstone

(1757-1851)

Bichat morreu em 22 de julho de 1802, em seu apartamento na rua Cloître-Notre-Dame, 18, Paris, onde havia assistido à morte de seu mestre Pierre Joseph Desault (1738-1795), médico, anatomista e cirurgião, autopsiado por ele, que residia no referido endereço, onde Bichat continuou a morar. Faleceu em companhia dos amigos médicos Pierre Jean Baptiste Esparron (1776-1818) e Philibert Joseph Roux (1780-1854). No mesmo dia, segundo o costume, seu discípulo, Philibert Joseph Roux, fez a necropsia de Bichat. Ele observou algumas alterações patológicas, como anormalidades na dentição, tendo Bichat sucumbido de meningite, devido à tuberculose. Em 1802, com 31 anos de idade, Bichat já era muito respeitado na comunidade médica parisiense.   

Desault    Pierre Joseph Desault

            (1738-1795)

CasaondemorreuBichat1902

Prédio onde Bichat morreu, rua Cloître Notre Dame, 18, Paris (1902).

 

MortedeBichat

M. F. X Bichat morrendo em companhia dos amigos médicos Pierre Jean Baptiste Esparron (1776-1818) e Philibert Joseph Roux (1780-1854). Por Louis Hersent (1777-1860). Faculdade de Medicina de Paris.

 
Esparron Essai sur les age de lhome  

  Pierre Jean Baptiste Esparron (1776-1818), médico francês, começou seus estudos de medicina em Lyon, onde foi, como Bichat, aluno de Marc Antoine Petit (1766-1811), médico cirurgião-chefe do Hôtel-Dieu de Lyon,  e terminou-os em Paris, onde foi aluno e um dos amigos íntimos de Bichat. Esparron praticou a medicina em Paris, sendo nomeado médico dos dispensários e da Société Maternelle. Pouco meses antes de morrer foi indicado para trabalhar no Hôpital des Enfants. Deixou uma tese intitulada Essai sur les âges de l'homme (1803), onde descreveu 4 períodos: criança (primeira idade), jovens (segunda idade), adultos (terceira idade) e idosos (quarta idade). Em cada idade apresentou estudos de anatomia, fisiologia, patologia e terapêutica. Um capítulo também foi dedicado ao feto.

 

Marc Antoinbe Petit BNF

Marc Antoine Petit

(1766-1811)

P.J.Roux

Philibert Joseph Roux

(1780-1854)

   Philibert Joseph Roux (1780-1854) foi médico cirurgião francês, tendo trabalhado no Hôpital Beaujon (1806), no Hôpital de la Charité (1810) e no Hôtel-Dieu de Paris (1835). Neste último foi o sucessor, durante 20 anos, de Guillaume Dupuytren (1777-1835), médico anatomista e cirurgião-chefe francês, falecido em 1835. Philibert Joseph Roux foi famoso pelas suas cirurgias de reparação do palato mole e por ser o primeiro a empregar um método de suturar com sucesso o períneo feminino lacerado. Contribuiu também com a publicação sobre as suas cirurgias na obra Quarante années de pratique chirurgicale (1854). Foi agraciado com os graus de Cavaleiro da Ordem Nacional da Legião de Honra e de Oficial. Foi professor de clínica cirúrgica da Faculdade de Medicina, membro (presidente) da Academia de Ciências, da Academia Imperial de Medicina e da Sociedade de Cirurgia de Paris. Faleceu de acidente vascular encefálico, em 3 de março de 1854.  

GuillaumeDupuytren

Guillaume Dupuytren

(1777-1835)

 O corpo de Bichat foi inumado no cemitério Sainte Catherine, em Paris. Em 1845, o cemitério Sainte Catherine encontrava-se superpovoado e decadente. No mesmo ano, milhares de médicos franceses foram à Paris, a um Congresso Médico Nacional. Os responsáveis pelo congresso logo designaram uma comissão especial para tratar da transferência dos restos mortais de Bichat para o cemitério Père Lachaise. Para a comunidade médica esta transferência era muito meritória, pois o Père Lachaise havia se tornado, rapidamente, o panteão dos grandes da cultura francesa, de Abélard Héloise [Pedro Abelardo (1079-1142), filósofo e teólogo francês, e Heloísa de Argenteuil (1090-1164), freira, abadessa e escritora francesa] a Molière [Jean Baptiste Poquelin (1622-1673), dramaturgo e ator francês]. Dois anos antes, em 1843, foi lá sepultado Christian Friedrich Samuel Hahnemann (1755-1843), médico alemão, fundador da medicina homeopática. Como eles, Bichat era visto como um herói e um exemplo. Seu corpo não deveria cair no anonimato de algum ossuário quase esquecido. Em 1845, Bichat ia finalmente ser colocado em companhia dos semideuses do Père Lachaise. Nesta época, Paris já havia se tornado o centro médico mais importante da Europa, apesar de sua preeminência estar sendo ameaçada pela Alemanha.

 

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Túmulo de Abélard e Héloise. Cemitério Père Lachaise, Paris.

Moliere1622 1673 

MOLIERE

Jean Baptiste Poquelin (1622-1673) (Molière) e seu túmulo no Cemitério Père Lachaise, Paris.

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Christian Friedrich Samuel Hahnemann (1755-1843) e seu túmulo no Cemitério Père Lachaise, Paris.

 

   Para os estudiosos da história da medicina parece muito natural que Bichat seja imortalizado também entre os grandes no cemitério Père Lachaise . Porém, não foi sempre assim. Uma estranha história está por trás da chegada dos restos mortais de Bichat em seu local de repouso final, cerca de 43 anos após a sua morte.

 

A EXUMAÇÃO DE BICHAT

   O cemitério Sainte Catherine, inaugurado em 1783, estava separado por um simples muro do cemitério de Clamart, que fechou, definitivamente, em 1793, sendo substituído pelo cemitério Sainte Catherine. Este, destinado a desaparecer, ao deixar de receber corpos a partir de 1812, os alunos de Bichat, para melhor preservarem a sua sepultura, custearam a colocação de uma modesta lápide tendo escrito “A Xavier Bichat par les membres de la Société d’Instruction Médicale.” O Conseil Gènérale de la Seine votou, em 6 de fevereiro de 1844, por uma concessão perpétua no cemitério Père Lachaise para conservar os ossos de Bichat. O Conseil des Hôpitaux de Paris, que havia promovido a construção de um Anfiteatro de Anatomia (l’amphithéâtre d’anatomie des hôpitaux de Paris), em 1833, próximo ao cemitério Sainte Catherine, ocupando a maior parte do terreno do cemitério de Clamart, pretendia conservar os ossos de Bichat neste anfiteatro, com a aprovação real em 8 de novembro de 1844, o que não foi adiante.

 

CemiteriosdeClamarteSantaCatarina2

Cemitério de Clamart contíguo ao Cemitério Sainte Catherine (depois de 1783), Paris.

CemiteriosdeClamartedeSantaCatarinaParis

Cemitérios de Clamart Sainte Catherine, quarteirão Saint Marceau, Paris, 1796.

   Como já referido, em 1845, no Congresso Médico em Paris, 4.500 participantes reuniram-se para discutirem todas as questões da profissão médica, onde também foi proposta uma homenagem solene à Marie François Xavier Bichat, sendo finalmente decidido o traslado de seus restos mortais para o cemitério Père Lachaise. Os mestres da época, que haviam conhecido Bichat e seguiam o seu exemplo, Philibert Joseph Roux (1780-1854), Pierre-Gaspard-Alexandre Devilliers (1781-1853), médico cirurgião francês, Henry Oradoux Blatin (1806-1869), médico francês, Joseph Bienaimé Caventou (1795-1877), farmacêutico francês, Félix Hippolyte Larrey (1808-1895), médico cirurgião e político francês, Joseph François Malgaigne (1806-1865), cirurgião, anatomista e historiador francês, Matheo José Buenaventura Orfila (1787-1853), químico, toxicologista e médico espanhol, Jean-Baptiste Bouillaud (1796-1881), médico francês, Pierre Adolphe Piorry (1794-1879), médico francês, Joseph Honoré Simon Beau (1806-1865), médico francês, Alphonse Sanson (1795-1873), médico, anatomista e cirurgião francês, Victor Auguste François Morel Lavallée (1811-1865), médico, cirurgião francês, Louis André Ernest Cloquet (1818-1855), médico francês, Antoine Étienne Renaud Augustin Serres (1786-1868), médico, anatomista e embriologista francês, entre outros, agruparam-se ao redor do irmão e do sobrinho de Marie François Xavier Bichat, respectivamente, Pierre Jean Baptiste César Bichat, com 70 anos de idade, e Hector Bichat, com 38 anos, para acompanharem a cerimônia.

Philibert Joseph Roux

     Philibert Joseph Roux

               (1780-1854)

  Devilliers

       Pierre G. A. Devilliers

              (1781-1853)

       Joseph Bienaim Caventou. Oil painting by Catherine Buisson Wellcome

            Joseph B. Caventou

                  (1795-1877)

F.H.Larrey

 Félix Hippolyte Larrey

          (1808-1895) 

    Malgaigne

Joseph François Malgaigne

(1806-1865)

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Matheo José B. Orfila

(1787-1853)

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Jean Baptiste Bouillaud

(1796-1881)

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     Pierre Adolphe Piorry

             (1794-1879)

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   Joseph H. Simon Beau

            (1806-1865)

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      Victor A. F. Morel Lavallée

                   (1811-1865)

E.Serres

Antoine E. R. A. Serres

(1786-1868)

   Era do conhecimento público que Philibert Joseph Roux possuía, há 40 anos, uma cabeça que se acreditava ser a de Bichat, a qual ele, talvez, não se desfizesse. Após as solicitações dos familiares de Bichat, e especificamente do irmão do mesmo, as quais, depois de algumas semanas, adquiriram um tom mais ameaçador, como a ideia de um processo, de um escândalo, que se refletiria em todo o mundo, e a preocupação com a sorte que ameaçava esta “relíquia sagrada;” todas estas circunstâncias mudaram as disposições de Philibert Joseph Roux, que concordou, assim, em reunir o crânio com o resto do esqueleto, há tanto tempo separado. Porém, outras preocupações tomaram conta da Comissão. Philibert Joseph Roux tinha como provar a autenticidade do crânio? E como o mesmo veio parar em suas mãos? Quem garante que ele não tenha sido enganado?

   Eis as explicações de Philibert Joseph Roux: Bichat para conseguir ter cadáveres para o seu anfiteatro de dissecação não teve outra maneira, a não ser a de ir adquiri-los no cemitério. Para isso, estabeleceu uma relação com o coveiro do cemitério Sainte Catherine, chamado Allart, homem pouco recomendável, que teve afeição por Bichat, devido à personalidade alegre do mesmo. Com Bichat morto, Allart prometeu aos seus alunos respeitar a tumba de Bichat e de não enterrar lá ninguém, promessa que ele cumpriu muito bem. Philibert Joseph Roux, tendo herdado o anfiteatro de Bichat, foi obrigado a continuar com o comércio de cadáveres com Allart, que transferiu para Philibert Joseph Roux parte da afeição que teve para com o Mestre, de tal modo que, com o aumento e o fortalecimento da confiança entre ambos, um dia, Philibert Joseph Roux revelou ao coveiro o seu desejo de possuir a cabeça de Bichat, ao qual Allart consentiu prontamente. E, assim, 3 anos mais tarde, Allart apareceu com um presente em suas mãos para Philibert Joseph Roux, a cabeça de Bichat totalmente descarnada, que ele retirou de sua tumba. Este relato do coveiro Allart, em remover a cabeça de Bichat, trouxe muitas outras incertezas com respeito ao resto do esqueleto, pois não poderia ele tê-lo visto também como objeto de comércio? Philibert Joseph Roux sem garantir de modo absoluto a honestidade de Allart neste comércio, declarou, contudo, que a afeição do coveiro por Bichat deveria descartar este receio. Mas, por um excesso de prudência, o coveiro não teria colocado outra cabeça no lugar da que ele roubou? Não poderia ele ter aproveitado um novo enterro para cumprir a sua promessa? Somente a exumação poderia responder estas questões, pois Allart estava morto há muito tempo, tendo levado consigo os seus segredos. Diante de tantos questionamentos, Pierre Gaspard Alexandre Devilliers lembrou que haviam cessados todos os enterros no cemitério Sainte Catherine, a partir de 1812.

  Sobre a autenticidade do crânio em suas mãos Philibert Joseph Roux deu os seguintes esclarecimentos, que satisfizeram a Comissão do Congresso: como já dito, ele mesmo havia feito a necropsia de Bichat e muito bem se lembrava de que o fio da serra usada para retirar a calota do crânio não era regular; que as duas superfícies dos cortes não se correspondiam exatamente, e que ao se retirar com força a calota, num movimento da frente para trás, ocorreu uma fratura na região occipital direita. No crânio que ele possuía observavam-se a irregularidade das superfícies de corte causadas pela serra e a fratura ocasionada em seguida. Além disso, o próprio Bichat havia anotado na seção sobre dentes, em seu livro Anatomie générale, appliquée à la physiologie et à la médecine (4 tomes) (1801), que o seu primeiro grande molar superior esquerdo apresentava-se pouco cariado, fazendo-o sofrer muito de tempos em tempos, e que o seu primeiro molar superior direito frequentemente tornava-se doloroso, apesar de intacto, e Philibert Joseph Roux se lembrava de que Bichat já havia perdido estes dentes, algum tempo antes de morrer. No exame do crânio em questão não havia também os dentes citados. 

 Assim, às 8 horas da manhã de domingo, dia 16 de novembro de 1845, todos estavam reunidos, para a exumação de Bichat, no cemitério Sainte Catherine. Estava um tempo bastante frio, com nevoeiro, e todos os arbustos que cobriam os túmulos estavam cobertos de orvalho. Pierre Gaspard Alexandre Devilliers levou os membros da Comissão para um cercado formado por uma treliça de madeira com um metro de largura e dois metros de comprimento, se apoiando em uma extremidade contra a parede do referido cemitério, onde havia uma lápide vertical, colocada por Étienne Pariset (1770-1847), médico francês, tendo na frente a inscrição, já citada: “A Xavier Bichat, par les membres de la Société d'instruction médicale.” Uma coroa de flores (coroa dos imortais) pendurada no muro e vasos de flores testemunhavam que o túmulo modesto não havia deixado de ser objeto de alguma atenção piedosa. A lápide foi retirada do lugar e o exame começou exatamente às 8 horas e 30 minutos. O coveiro traçou sobre e ao redor da tumba um paralelogramo de 2 metros de comprimento por 1 metro de largura e começou a retirar a terra para um lado e para o outro. Aos primeiros golpes da pá fez-se ao redor um silêncio religioso; e como a escavação continuava sem acidentes e resultados, houve dispersão, uns permanecendo ao redor da cova, outros se retirando para longe, e todos entabulando uma conversa animada. Retiraram-se para uma pedra tumular vizinha para ouvirem um discurso que Philibert Joseph Roux pronunciaria mais tarde. Três quartos do discurso já tinham sido lidos quando um grito fez o coração palpitar, pois algo de novo havia ocorrido, que chamou a presença de todos. A cerca de 60 centímetros de profundidade a picareta ressoou como sobre uma cavidade e o último golpe dado causou um pequeno desabamento no interior. A pá vindo em socorro da picareta não tardou em colher junto com a terra ossos humanos; cerca de duas ou três vértebras, algumas costelas e outros pequenos ossos. Recolheu-se todo o tesouro sem saber-se, exatamente, o que poderia ter se tornado um cadáver enterrado há quarenta e três anos. Enquanto Pierre Gaspard Alexandre Devilliers ocupava-se desta coleta, a pá recolheu um rádio de criança, de modo que estes primeiros restos não pertenciam à tumba em si, mas eram ossos soltos e perdidos, como contém toda terra de cemitério. Assim, foram completar a leitura do discurso.  

E.Pariset

Étienne Pariset (1770-1847)

  Um segundo grito chamou a atenção. Uma hora e meia se passou e no centro da cova apareceu uma escápula. Do lado esquerdo da cova a picareta causou um pequeno desmoronamento permitindo ver um úmero, os ossos do antebraço direito, e costelas. As costelas estavam à esquerda dos ossos do antebraço. Mas como os ossos do antebraço direito foram parar no lado esquerdo da cova? Provavelmente Allart para obter o crânio retirou o caixão deixando-o em outra disposição. Na dúvida de se o esqueleto seria mesmo de Bichat, Philibert Joseph Roux perguntou ao coveiro se havia um crânio. O coveiro cavou com as suas mãos próximo ao muro e imediatamente retirou o crânio de uma criança pequena, com os ossos ainda não reunidos. Philibert Joseph Roux lembrou que o importante era seguir as vértebras; o coveiro seguindo a direção indicada encontrou a vértebra Atlas perfeitamente conservada e, logo depois, a Axis e mais três ou quatro vértebras, não sendo encontrado o crânio, o que era de se esperar. Philibert Joseph Roux aproveitou e verificou que a vértebra Atlas se ajustava perfeitamente nos côndilos occipitais do crânio em suas mãos.

  Joseph François Malgaigne foi colocando num caixão de carvalho, de acordo com a anatomia, todos os ossos na medida em que a exumação ia ocorrendo. Philibert Joseph Roux completou o corpo de Bichat, restituindo-lhe o crânio em suas mãos, o qual ficou separado do esqueleto por quarenta anos. Os restos de Bichat foram, então, transportados em um rico carro fúnebre à Catedral de Notre-Dame, sendo escoltados por todos os presentes na exumação, chegando às 11 horas às portas da cidade, onde estava reunido um imenso grupo de médicos e de alunos das escolas, o presidente do Congresso Médico, Antoine Étienne Renaud Augustin Serres, e muitos membros do congresso, incluindo estrangeiros, o presidente da Academia de Medicina e da Faculdade, membros do Conselho Geral dos Hospitais, muitos médicos de Paris e das províncias, etc. Após a cerimônia religiosa fúnebre em grande pompa na Catedral de Notre-Dame, o imenso cortejo dirigiu-se, às 2 horas, ao cemitério Père Lachaise. Após seguir as docas, a praça Saint-Germain-l’Auxerrois, a rua Saint-Honoré, a praça des Victoires, a rua Montmartre e os boulevards, chegou às 4 horas no cemitério, onde oito discursos foram pronunciados para celebrar a glória de Bichat, por  Philibert Joseph Roux e demais autoridades presentes. Uma outra homenagem semelhante foi feita em 16 de julho de 1857, com a inauguração de um monumento a Bichat, que o Congresso Médico de 1845 havia decidido elevar no pátio da Faculdade de Medicina de Paris.

 

Paris1857EstatuadeBichat

    Inauguração da estátua de Marie François Xavier Bichat na Faculté de Médecine de Paris, em 16 de julho de 1857.

EstatuadeBichat1857 XavierBichatsmonument2 

Estátua de Marie François Xavier Bichat no pátio da Faculté de Médecine de Paris (Université Paris-Decartes), inaugurada em 16 de julho de 1857.

 

Referências:

 

Albert Prieur – La maison oú est mort Bichat. Étude de topographie historique. Bulletin de la Société Française d’Histoire de la Médecine, Paris, Alphonse Picard & Fils, 1902, pages 214 – 235.

(Anonyme) – [Congrès Médical de France] – Honneurs Funèbres Rendus a Bichat. Bulletin Général de Thérapeutique Médicale et Chirurgicale, Tome Vingt-Néuvième, Paris, 1845, pages 500-512.

(Anonimous) – The strange adventures of an anatomist's head. The British Medical Journal, December 1, 1900, page 1601.

Charles Lenormant & Maurice Genty - L’Exhumation de Bichat Racontée par Malgaigne - Le Progrès Médicale, numéro 2, Supplément Illustré, Paris, 1929, pages 9-15.

Jean Jacques Rigal (de Gaillac) - Procès verbal d'exhumation des restes de Bichat, La Lancette Française, Gazette des Hopitaux Civils et Militaires, numéro 140, tome VII, 2e Série, 20 novembre 1845, pages 565 a 566.

Jules Gérin – Funérailes de Bichat – Procès-Verbal D’Exhumation des Restes de Bichat, Lu a L’Académie Royal de Médecine, dans la Séance du 18 Novembre 1845, Par M. Rigal (de Gaillac). Gazette Médicale de Paris. Deuxième Série. Tome Treizième. Numéro 47. Anné 1845. Pages 761- 764.

Roberto Marco Cuéllar – La histología y citología. In: Entralgo, P.L. (ed.) – História Universal de la Medicina; Tomo V.; Barcelona; Salvat; 1973; pp. 205-219.

Russell Charles Maulitz – Morbid Appearances. The Anatomy of Pathology in the Early Nineteenth Century. Cambridge, Cambridge University Press, 1987, 277 pp..

 

Imagens:

Abelardo & Heloisa

http://www.francescacruz.com/abelard-and-heloise/

https://amedievalwomanscompanion.com/heloise-stealing-heaven/

http://abelardetheloise.blogspot.com.br/2009/06/tumulo-no-cemiterio-pere-lachaise-paris.html

Antoine Étienne Renaud Augustin Serres (1786-1868):

http://wellcomeimages.org/indexplus/image/V0005383ER.html

Cemitérios de Clamart e Sainte Catherine:

http://www.tombes-sepultures.com/crbst_866.html

http://www.biusante.parisdescartes.fr/histoire/medica/resultats/?p=12&cote=90170x1929xsup&do=page

Cemitério de  Père Lachaise em 1837:

http://www.history-paris.com/2011/12/14/napoleonic-guided-tour-pere-lachaise-cemetery/

Christian Friedrich Samuel Hahnemann (1755-1843):

http://fotos.miarroba.es/fotos/8/c/8cd30a2c.jpg

https://homeoesp.org/artigos/homeopatia/hahnemann

Claude Bernard (1813-1878):

http://s1253.photobucket.com/user/GetsmartWakeupNow/media/ClaudeBernard3.jpg.html

Edward Johnstone (1757-1851)

http://artuk.org/discover/artworks/edward-johnstone-17571851-principal-of-queens-college-birmingham-34679

François Magendie (1783-1855):

http://www.biusante.parisdescartes.fr/images/banque/zoom/anmo0325.jpg

Guillaume Dupuytren (1777-1835):

http://wellcomeimages.org/indexplus/image/V0004626.html

James Carmichael Smyth (1741-1821):

https://en.wikipedia.org/wiki/James_Carmichael_Smyth_(physician)

Jean Baptiste Bouillaud (1796-1881):

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/8/89/Jean-Baptiste_Bouillaud.jpg

John Hunter (1728-1793):

https://commons.wikimedia.org/wiki/File:John_Hunter_(1728-1793),_surgeon_and_anatomist._Oil_painting_Wellcome_V0017905.jpg

Joseph Bienaimé Caventou (1795-1877):

http://www.wikiwand.com/es/Joseph_Bienaimé_Caventou#/overview

Joseph François Malgaigne (1806-1865):

https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Malgaigne.jpg

Joseph Honoré Simon Beau (1806-1865):

http://www.biusante.parisdescartes.fr/histmed/image?anmpx37x0124a

Marc Antoine Petit (1766-1811):

http://www.biusante.parisdescartes.fr/histoire/images/index.php?refphot=anmpx23x2691

http://wellcomeimages.org/ef/ixbin/hixclient?id=0aebddcfc14f46c99d8c91e2307c67a0&view=image&offset=0

Marie François Xavier Bichat (1771-1802):

http://images.fineartamerica.com/images-medium-large-5/portrait-of-francois-xavier-bichat-1771-1802-pierre-maximilien-delafontaine.jpg

Túmulo de Bichat no Cemitério Père Lachaise:

http://www.findagrave.com/cgi-bin/fg.cgi?page=gr&GRid=7732

 A casa onde morreu Bichat:

Albert Prieur – La maison oú est mort Bichat. Étude de topographie historique. Bulletin de la Société Française d’Histoire de la Médecine, Paris, Alphonse Picard & Fils, 1902, pages 214 – 235.

 A morte de Bichat:

https://letamendi.wordpress.com/2014/08/05/la-muerte-de-bichat/

 Monumento a Marie François Xavier Bichat:

http://himetop.wikidot.com/xavier-bichat-s-monument

http://www.biusante.parisdescartes.fr/histmed/image?CIPN20074

Charles Lenormant & Maurice Genty - L’Exhumation de Bichat Racontée par Malgaigne - Le Progrès Médicale, nombre 2, Supplément Illustré, Paris, 1929, pages 9-15.

Matheo José Buenaventura Orfila (1787-1853)

http://mateuorfila.blogspot.com.br/

Molière [Jean Baptiste Poquelin (1622-1673)]:

http://www.appl-lachaise.net/appl/article.php3?id_article=1013

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/d1/Pierre_Mignard_-_Portrait_de_Jean-Baptiste_Poquelin_dit_Molière_(1622-1673)_-_Google_Art_Project_(cropped).jpg

Philibert Joseph Roux (1780-1854):

https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/d/da/Philibert_Joseph_Roux.jpg

Pierre Adolphe Piorry (1794-1879):

http://www.biusante.parisdescartes.fr/histmed/image?anmo0248

Pierre Jean Baptiste Esparron (1776-1818):

Essai sur les âges de l'homme (1803)

http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6360766r/f11.highres 

Pierre Joseph Desault (1738-1795):

https://en.wikipedia.org/wiki/Pierre-Joseph_Desault

René Théophile Hyacinthe Laennec (1781-1826):

http://www.lichtmikroskop.net/geschichte/rene-laennec-stethoskop.php

Thomas Hodgkin (1798-1866):

http://www.kcl.ac.uk/gordon/about/people.aspx

http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1255947/

Victor-Auguste-François Morel Lavallée (1811-1865):

http://huep.aphp.fr/wp-content/blogs.dir/146/files/2015/09/07-Hétmatome-disséquant-et-syndrome-de-Morel-Lavallée.pdf

William Cullen (1710-1790)

http://www.jameslindlibrary.org/articles/william-cullen-1710-1790/

 

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